31 de janeiro de 2014

Doutor Corsino Tolentino, Investigador: “A Uni-CV tem de criar conhecimento útil e reforçar a autonomia”

Doutor Corsino Tolentino, Investigador: “A Uni-CV tem de criar conhecimento útil e reforçar a autonomia”

A primeira eleição do reitor da Uni-CV a acontecer esta sexta-feira é já considerada um marco na história da universidade pública do país. Entretanto, afirma Corsino Tolentino, independentemente de quem ganhar as eleições, elas trarão, no mínimo o reforço da legitimidade do reitor e da instituição que representará.


Expresso das Ilhas – Que leitura faz da primeira eleição de um reitor da Uni-CV?
Corsino Tolentino – Concordo, essas eleições serão históricas. E serão mesmo, pelo menos no calendário da criação, consolidação e desenvolvimento da primeira e única universidade pública de Cabo Verde. Por serem inéditas e quanto mais não seja por isso, esta eleição ficará na história da educação nacional. Para mim, isto está claro. Mas a importância do facto reconhecidamente histórico dependerá de quem ganhar as eleições e daquilo que fizer como consequência dessa escolha e durante o mandato. Seja como for, eu creio que essas eleições trarão, no mínimo, o reforço da legitimidade do reitor e da instituição que representará. Logicamente, o reforço da legitimidade aumentará o poder da reitoria e da universidade no diálogo com os parceiros, nomeadamente com o governo. Mas as consequências da escolha dependerão da equipa que a eleita ou o eleito constituir e da qualidade do trabalho que realizar. Portanto, essas eleições criarão condições para o reforço da capacidade institucional, para a elevação da capacidade de diálogo e aumentará a possibilidade de o reitor ou reitora formar a equipa. Contudo, conhecidas as circunstâncias económicas, culturais e políticas, muito dependerá da atitude pós-eleitoral dos atuais candidatos: vão cooperar em nome do futuro da Universidade e de Cabo Verde ou não? De todo o modo é ao eleitorado que agora compete decidir.

O que é que distingue o programa das três candidaturas apresentadas?
Provavelmente as duas lacunas maiores desta campanha eleitoral são o modesto interesse da sociedade e a deficiente comunicação. Entendo que no futuro o caso merecerá mais visibilidade. Creio que o assunto não tem tido a presença nem tem suscitado os debates necessários. De qualquer modo, eu penso que os três concorrentes são pessoas decentes e espero que ganhará aquela ou aquele que merecer maior apoio dos seus colegas e do eleitorado que, como a lei estabelece, é composto de professores, investigadores, funcionários e estudantes da casa. Porém, para que seja Cabo Verde a ganhar, serão os adversários de hoje, vencedor/a e perdedoras/res a reconhecer o mérito eleitoral e a formarem com ele uma equipa unida, mais forte, para realizarem a grande missão da Universidade ao serviço da nação. Por aquilo que eu conheço dos três candidatos, posso afirmar que são pessoas de bem, que não estão lá para ludibriar o eleitorado, capazes de reconhecer o mérito àquela ou àquele que ganhar as eleições e de mostrarem disponibilidade e de interagirem com a eleita, ou o eleito, de forma a formarem uma equipa e de realizarem aquilo que se espera que a Uni-CV faça.

Temos duas mulheres e um homem? Qual dos três candidatos tem melhor perfil, mesmo tendo em conta a questão do género?
Por aquilo que tenho observado e por convicção, eu coloco em primeiro lugar o mérito, a competência. O género vem depois. Até porque a sociedade cabo-verdiana vai precisando cada vez menos de termos esta preocupação que pode até transformar-se num preconceito. Para mim, o que importa é o lugar x, a reitora ou o reitor da universidade pública de Cabo Verde, que terá de ser uma pessoa, um cabo-verdiano, homem ou mulher competente, aberto ao diálogo e capaz de consolidar e promover o desenvolvimento da instituição. Neste caso concreto, não sou eleitor e não me vou pronunciar sobre o perfil individual dos candidatos. Obviamente, enquanto cidadão interessado na Educação como motor de desenvolvimento, verifico que tanto a Doutora Amália Lopes, como a Doutora Judite Nascimento, quanto o Doutor Paulino Fortes são pessoas eticamente corretas e ousadas, cientificamente preparadas para o exercício do cargo. Têm plataformas eleitorais não muito claramente distintas, quando a gente as ouve, vê ou lê. Mas será imprescindível os eleitores conhecerem a visão e as prioridades dos candidatos e cumprirem o seu dever cívico e institucional.

O facto de o Doutor Paulino Fortes ser o único candidato que pode apresentar balanço é uma vantagem?
Eu creio que não é necessariamente uma vantagem e as eleições em outros sectores, nomeadamente eleições políticas, dizem que estar no posto, ou ter estado, apresentam vantagens e inconvenientes. Neste caso, eu acredito que o Professor Paulino Fortes, pelo carácter pessoal, pela forma como ele decidiu abraçar a causa e a eleição, não vai tentar, por uma questão de ética, qualquer manobra de utilização do cargo para se fazer eleger. Até porque, por força dos regulamentos, ele está suspenso, e por conseguinte vai em pé de igualdade com as duas colegas. Para mim as duas colegas têm, pelas funções que têm desempenhado em Cabo Verde e nomeadamente no mundo universitário, o perfil e a coragem adequados à reitoria da Universidade de Cabo Verde. De qualquer maneira, fico por aqui, porque eu só poderei ter opinião e até dar palpites sobre o resto depois de a pessoa vencedora me apresentar a respetiva equipa e as linhas orientadoras da acção nos próximos tempos. Eu utilizaria o termo ‘são pessoas decentes’, que estão empenhadas em servir a universidade, em servir Cabo Verde e aí não vejo que possa haver vantagens importantes, porque todos os candidatos são conhecidos do corpo eleitoral e portanto os eleitores saberão, de acordo com os critérios legalmente estabelecidos, quem melhor servirá a Uni-CV no papel de reitor/a.

O que é que vai mudar na vida académica com a eleição do primeiro reitor na UNI-CV, pois continuará a depender de uma grelha orçamental imposta pelo governo?
A escassez orçamental é mais imposta pelo estado da economia do que pelo governo. Cabo Verde produz pouco. Mas, será precisamente aqui é que iremos ver a diferença entre a gestão actual e a gestão futura da Universidade: a gestão de um reitor nomeado pelo governo e a gestão de um reitor eleito. Simbolicamente a eleição terá grande  influência no comportamento do reitor que passa a ter duas grandes características: uma que é ser o escolhido da comunidade universitária. É escolhido e isso implica uma co-responsabilização entre o eleito e os eleitores. Por outro lado, está na expectativa legítima do eleitorado, escolher um reitor capaz de discutir a missão da universidade e os mecanismos de realização dessa missão com o governo e com a sociedade. Vai discutir, designadamente com o sector económico, com os jornalistas e com a Administração Pública os meios e os mecanismos para realizar os compromissos. Esta obrigatoriedade que decorre da forma como o reitor é escolhido, portanto pela via eleitoral, reforça a sua autoridade no diálogo com o governo e com outros sectores da sociedade e reforça a responsabilização da comunidade universitária. Portanto, nunca será igual a um reitor nomeado pela via administrativa. De qualquer maneira está a colocar uma questão que é fundamental, o financiamento. Aí eu creio que não há possibilidades de termos uma universidade a crescer bem, em números e qualidade do corpo docente, dos investigadores, da missão universitária com apenas as verbas previsíveis no Orçamento Geral do Estado. Isto é, ou há capacidade da nova direcção para, apoiando-se nos estatutos, numa legitimidade reforçada, nesse maior poder de diálogo, propor uma cooperação internacional da qual resultarão mais recursos e mais visibilidade ou tudo continua quase na mesma. A redefinição da própria missão e da estratégia será um imperativo das eleições. Por outro lado, eu não creio que qualquer reitoria de uma universidade em Cabo Verde, seja capaz de limitar-se aos recursos do Estado e das propinas pagas pelas famílias. Sabemos que isso é o mínimo, é imprescindível, mas temos de melhorar a cooperação internacional. Eu até penso que provavelmente o reitor eleito terá que dar uma clara importância a duas áreas que, em geral, não são contempladas nas orgânicas institucionais: a relação com a economia nacional e cooperação internacional. Porque é cada vez mais possível, se fizermos bem o trabalho de casa, nós irmos buscar recursos financeiros, técnicos e científicos mais gente especializada nas diversas funções universitárias para ajudar-nos a fazer o que temos de fazer. Para além desses dois aspetos, a Uni-Cv tem que decidir o que é prioritário: se é aumentar a capacidade de acomodação, instalando  em todas as ilhas e criando cursos a torto e a direito, ou se será descobrindo outras formas de democratizar o acesso e o sucesso na universidade, que não passam necessariamente pela multiplicação instituições ou de campi.

Que leitura faz do cancelamento pelo governo do processo eleitoral já então em andamento?
Foi, obviamente, um erro evitável. Esse cancelamento refletiu pelo menos duas coisas: deficiente programação e recurso indevido à autoridade pública. Neste aspecto é sempre mau e, naturalmente criou mal-estar no meio académico. Foi um mau exemplo e eu insisto com os candidatos e com a comunidade universitária para basear no Conhecimento e na Ética a sua postura em cada momento, em particular na ora das escolhas cruciais.


O Professor Paulino Fortes disse na altura não ter caído bem a suspensão das eleições, mas acabou por aceitar o cargo de reitor. Este facto terá reflexos nestas eleições?
Se terá reflexos, não tenho informação para avaliar esta espécie de ambiguidade ou contradição de Paulino Fortes: por um lado eu defendo as eleições segundo está previsto, por outro lado, há suspensão do processo e eu aceito ser reitor nomeado administrativamente. Eu reconheço o seguinte no Doutor Paulino Fortes: pode ser que ele tenha tido uma reflexão de natureza patriótica traduzida mais ou menos nestes termos: eu não concordo teoricamente com esta solução de suspensão, mas tenho o dever de contribuir para chegarmos lá, ou seja, para criar as condições de eleições, e ele está a cumprir essa parte. Para mim, essa ambiguidade é compreensível. Ele encontrou-se numa situação de necessidade e terá dito algo como isto ‘mas alguém tem de agarrar este processo’. E tem de agarrar para quê? Para levar às eleições.

É justamente o que critica a candidata Amália Lopes: falta de autonomia que coloca a Uni-CV na situação de quase tutela face à entidade governamental a ponto de os Estatutos poderem ser modificados consoante as conveniências dos seus dirigentes e também de falta de democraticidade em relação ao corpo docente.
Conhecendo como conheço a candidata Amália Lopes e mesmo sem domínio dos pormenores, tendo acompanhado a evolução dos processos de criação e consolidação da Uni-CV, eu acredito que ela tenha razões objectivas para fazer a crítica que faz. Por outro lado, eu alerto para o seguinte: em Cabo Verde ainda criticamos em voz baixinha, mas quando chega a hora de fazer e de participar, somos muitas vezes reticentes. Portanto, eu espero  que estas críticas sejam ouvidas e que os críticos assumam todas as consequências delas decorrentes. Por intromissão e também por auto omissão, tem-se a impressão de que, de facto, quem manda na Universidade é o governo. Portanto, a candidata Amália Lopes terá razões para fazer a crítica que faz e eu acrescentaria que essa revisão [das alterações introduzidas, em 2011, nos Estatutos da Uni-CV] será necessária por quem ganhar as eleições. Porque uma coisa é receber dinheiro do Estado, coisa diferente é exercer, ou não exercer as competências próprias de uma universidade. A universidade tem de ser crítica, tem de ser autónoma para poder ser útil à sociedade e eficiente na aplicação dos recursos. Portanto, esta tensão tem que existir e é por isso é que eu digo que o próximo reitor tem que ser muito criativo na formação da sua equipa, na estruturação da reitoria e naquilo que levará ao aumento da autonomia da Uni-CV relativamente ao próprio governo, ou qualquer outra força organizada, nomeadamente económica, nacional ou estrangeira. Os caminhos que levarão a estas soluções são os caminhos de maior afirmação, uma estrutura muito competente para poder envolver quer o sector económico nacional, quer a cooperação internacional.               

Dependendo grandemente dos recursos do Estado não será fácil à Uni-CV libertar-se da sombra tutelar do governo.
Até hoje a obediência ao orçamento e à vontade do Estado confundem-se, mas não está longe o dia em que a Universidade como o Governo saberão claramente que uma e outro gastam recursos do povo para realizar o seu bem-estar. A ideia de que temos de ser boas meninas e bons rapazes para merecer um melhor quinhão do orçamento do Estado é perversa e tem de acabar. Ou seja, pode-se ser socialmente muito responsável, politicamente muito sério e exercer a autonomia que um reitor de uma universidade pública tem de exercer. Não, a Uni-CV tem de se afirmar nas suas pernas enquanto centro de conhecimento útil à sociedade cabo-verdiana e ao próprio governo. Mas tem de haver competência para a negociação e a gestão.

Judite Nascimento é outra candidata que quer pôr cobro à falta de autonomia e “excessiva intervenção directa do governo na Uni-CV”. Quais as razões desta intervenção? 
As principais razões são duas. Por um lado, há uma ambição tradicional de manter a universidade como um pequeno departamento do Estado, portanto sem assumir essa autonomia intelectual e científica que é imprescindível, há esta tendência para subjugar a universidade. Por outro lado, há a outra componente sem a qual a primeira não funciona. É a falta de assunção pela comunidade universitária da sua parte. É dessa tensão saudável, com uns a quererem mais autonomia e outros a serem obrigados a ceder – porque quem poder não o larga por vontade própria – é que resultará o equilíbrio necessário.

A Professora Judite Nascimento tem perfil para conquistar esta autonomia?
Eu penso que sim mas, como disse há pouco, nada está garantido. Primeiro, tem de convencer o eleitorado de que tem esse perfil, depois tem de ganhar a eleição e, por fim, terá de mostrar a equipa e as prioridades. Até agora, a única coisa que eu posso dizer é que do meu ponto de vista ela tem razão. A autonomia, sejam quais forem as causas, é quase nula e a Uni-CV é invisível fora dos seus campi. Isso tem causas internas e externas e, para essa relação mudar, bastará cada uma das partes assumir o seu papel.

A Professora Amália Lopes afirma que neste momento temos uma universidade intervencionada. É mais uma crítica à mão do governo dentro da Uni-CV?
Sim, por culpa comum aos intervencionados e aos intervencionistas, que são as duas faces da mesma moeda. Por sinal, não se vê grande diferença entre os candidatos sobre esta matéria. Com maior ou menor ênfase, com mais ou menos cautela, todos criticam o défice de autonomia. O consenso parece alargar-se a domínios como a necessidade da reforçar o corpo docente através da formação, da responsabilização, do convite a estrangeiros experientes para trabalhar com equipas nacionais. Isso também é uma necessidade que tem sido sublinhada e é muito importante. Depois existe a questão da interacção entre as diversas unidades que não está respondida. Seja como for, é crucial e vai exigir muita sabedoria e determinação nos próximos tempos: a Universidade de Cabo Verde vai ser nacional ou não? E como será? As respostas não são fáceis mas têm de ser encontradas. Com as dificuldades impostas pelas características de Cabo Verde, a tentação é de fazer o óbvio, que é criar um curso ou um liceu num sítio qualquer e chamar-lhe universidade ou escola superior. É também frequente tropeçarmos na questão linguística. A Uni-CV tem de decidir e fazer saber que a língua oficial é o português, ponto final.
            
Os três candidatos prometem um ensino de qualidade, mas como vai ser possível cumprir a promessa com os Campi da Uni-CV superlotados e com bibliotecas mal apetrechadas?
Temos de reconhecer que um grande esforço tem sido feito neste domínio e os resultados são palpáveis em termos de livros e espaços e ainda de acessibilidade a bibliotecas virtuais. O que considero pouco inteligente desonesto é não reconhecer publicamente a grande escassez existente e fingir que tudo vai bem. Não, a universidade não foi criada nem consome o que consome principalmente para divertir a juventude ou mantê-la aparentemente ocupada. Infelizmente, o embate das primeiras gerações de diplomados com o mercado do trabalho está a comprovar isso. Isto é, a competência média dos diplomados pela nossa universidade pública é baixa. Isso pode-se comprovar: os estudantes chegam dos liceus mal preparados nas matérias científicas e na comunicação. Portanto, se a universidade não for capaz de resolver esta questão da língua do ensino e de ajudar o Estado na resolução dos problemas acumulados da educação pré-escolar, do ensino básico e do secundário, se não for capaz de atacar a questão orçamental para aumentar os recursos nomeadamente através dos contactos articulados com a economia nacional e com o estrangeiro, se não desenvolver uma estrutura eficiente que permita ter informação sistematizada para poder negociar eficazmente com o governo, não chegará muito cedo à qualidade de que tanto se fala.

O que diria a um eleitor que deseje cumprir o dever de escolher o reitor?
Que vá escolher a melhor candidata ou o melhor candidato e que assuma todas as consequências do acto. Faça as contas, compare os talentos, escolha e seja coerente.


Fonte: Antonio Monteiro, Expresso das Ilhas

Sem comentários:

Enviar um comentário